Reforma Trabalhista: sem direitos para os trabalhadores, a sociedade se torna inviável
Por Álvaro Ruiz
A insistência em Reformas Trabalhistas flexibilizadoras pouco tem a ver com as necessidades daqueles que vivem de seu trabalho, daqueles que desejam mantê-lo ou acessar um trabalho que lhes permita realizar seus sonhos. Trata-se apenas de aumentar as taxas de ganhos de capital, independentemente das trágicas consequências sociais que isso acarretará.
MODERNIZAÇÃO ENGANOSA
É comum que se faça referência aos avanços tecnológicos, embora sem grande precisão, para desenvolver um pensamento que force uma conclusão desqualificante das atuais regulamentações trabalhistas.
As principais ideias que se inclinam às concepções dessa espécie, não se limitam a regulamentações legislativas, criticadas pela rigidez que impediria sua adaptação a novas formas de organização do trabalho, mas também abarcam as resultantes de convenções coletivas (CCT).
A alternativa proposta é, na verdade, uma total desregulamentação que toma o cuidado de enunciar, porém sabendo que só poderia ser alcançada através de outros regulamentos que as substitua mudando o objeto de sua função tutelar, que seria a empresa (leia-se os empresários) e não o trabalho (isto é, trabalhadores e trabalhadores).
As premissas de tal raciocínio, sem qualquer demonstração prática, são que deveria ser permitido fluir os potenciais produtivos que resultariam do funcionamento adequado do Mercado, que a empregabilidade depende das liberdades oferecidas àqueles que podem fornecer emprego e que os custos trabalhistas conspiram contra as possibilidades de desenvolvimento.
A pretendida modernização pouco tem de moderna. Logo se percebe que esses anseios empresariais têm sido reivindicados desde o início do capitalismo e que se baseiam no aumento das assimetrias das relações de trabalho, com o objetivo de, obviamente, aumentar tanto a disposição quanto a sujeição da força de trabalho enquanto transpõe um efeito similar em termos dos lucros obteníveis.
UMA ANÁLISE MAIS RIGOROSA
O anacronismo postulado resulta da identificação dessa legislação [argentina] com a que foi aprovada há mais de 70 anos que, em perspectiva, se diz valorizar. Embora se afirme que, devido a corresponder a outros tempos, seu valor seria obviamente histórico e sua manutenção como tal insustentável.
Na verdade, os avanços transcendentes no campo dos direitos sociais referidos nunca foram avaliados positivamente por esses setores, mas foram combatidos apelando a argumentos semelhantes e em todas as oportunidades que tiveram, particularmente em governos ditatoriais, promovendo a revogação dessa legislação. O exemplo mais emblemático foi a revogação da Constituição Nacional sancionada em 1949 por um mero grupo militar em 1955.
Muitos e variados são os regulamentos trabalhistas expressos no CCT, nos Estatutos Profissionais (do Trabalhador Rural, do Jornalista, do Trabalhador Doméstico, entre outros),em leis específicas (do Dia do Trabalho, Riscos Ocupacionais, Segurança e Higiene, Emprego) ou a lei geral (a Lei do Contrato de Trabalho – LCT).
Esta última, por constituir um tipo de lei trabalhista comum, é sobre a qual as críticas mais virulentas são derramadas. Obviamente, independentemente das vicissitudes pelos quais a LCT passou, com a modificação pejorativa ou revogação de mais de 100 artigos em abril de 1976 (menos de dois anos após sua sanção), como por meio de reformas de diferentes tipos que foram verificadas desde a recuperação da Democracia em 1983.
Ao qual mal se pode atribuir um anacronismo pelo único período de tempo, quando não é consistente com o que aconteceu com seus dispositivos reguladores diretos, bem como com aqueles que se originaram em outras leis e que, indiretamente, afetaram seus ditames regulatórios.
Nesse sentido, e negando a natureza limitante a ela atribuída, a LCT não estabelece estabilidade no emprego, ainda que permita a demissão gratuita, mas compensada quando não é fundada em uma causa justa. Também inclui várias modalidades de contratação adaptáveis a requisitos específicos, como contratos por prazo determinado, eventuais, sazonais e de meio período.
Semelhante é o que aconteceu na área da negociação coletiva, pois além da identificação numérica (que em muitos casos se refere ao ano de seu acordo inicial na década de 1970), cláusulas de natureza diferente foram incorporadas nas rodadas sucessivas. O mesmo que novos CCTs, que em alguns casos responderam aos acordos alcançados entre sindicatos e empregadores. Somente entre 2003 e 2015, foram registrados mais de 10.000 acordos e convenções coletivas.
PENETRAÇÃO CULTURAL PERIGOSA
O Mundo do Trabalho passou por importantes transformações que estão longe de se originarem em um futuro inexorável, tampouco de ser uma consequência necessária da incorporação de novas metodologias no trabalho produtivo.
Certamente, o desenvolvimento tecnológico, especialmente no campo da informação e comunicação (as chamadas TICs ou PPPs), afeta a divisão internacional do trabalho, bem como os modos de organização no nível local, e impõe atenção ao significado e propósitos que caiba atribuí-los, como os benefícios ou danos que resultam para as pessoas que trabalham.
Assim, considerar as regulações necessárias para a cobertura desses fenômenos não implica ceder paradigmas – antigos – que atendem apenas ao lucro, hoje apresentados como requisitos de produtividade e competitividade, que negam definitivamente a proteção fundamental que constitui a pedra angular do Direito do Trabalho.
Os modos de prestação de serviços por meio de aplicativos (Rappi, Glovo, Uber) não estão fora da captação regulatória da legislação existente, trata-se de empresas que contratam pessoas cujo desempenho somente pode ser cumprido se inserindo em uma organização de terceiros, as quais exercem sua orientação e, até mesmo – embora de maneira velada – um poder disciplinar, bem como a imposição de suas condições de trabalho.
O abuso de figuras contratuais não trabalhistas não altera de modo algum a essência do vínculo, que deriva das características descritas acima e que explicam a existência de uma relação de emprego.
A singularidade desta época é o grau de penetração do neoliberalismo na configuração do senso comum de trabalho, a ponto de as vítimas desses mecanismos de fraude – como boa parte da sociedade, que utiliza tais serviços – naturalizar formas de trabalho dependente sem qualquer proteção, a extensão de horas de trabalho sem limites e uma remuneração para “trabalho puro” (baseado apenas em uma taxa muito baixa em relação ao trabalho realizado) sem garantia da percepção de um salário básico.
Um episódio recente, na sequência de um acidente de trânsito sofrido por um entregador da GLOVO, mostra até que ponto chegamos a este processo de colonização cultural. A pessoa ferida (um homem de 63 anos que trabalhou como técnico em eletrônica por mais de três décadas) ao se comunicar com a empresa, recebeu como a resposta da operadora (uma parceira de trabalho) um requerimento sobre o estado da mercadoria coletada e de uma foto para verificação da mesma, apesar de saber que ele estava ferido, atirado na rua e incapaz de se mover. Logo, o cliente que aguardava a entrega aproximou-se do local e retirou a pizza que havia pedido sem oferecer nada além do respectivo pagamento.
Por outro lado, o precário entregador, – guiado ou não -, assume naturalmente sua condição e ensaia uma justificativa do processo empreendedor, observando que a empresa não acredita em seus funcionários quando eles dizem que sofreram um acidente na rua. Que essa desconfiança está relacionada ao fato de que muitos dos “glovers” são capazes de fingir um acidente para manter a mercadoria.
A QUE TIPO DE SOCIEDADE NÓS ASPIRAMOS?
Comportamentos como o acima mencionado denotam um grau alarmante de desumanização das relações interpessoais, assim como a assimilação acrítica de propostas inviáveis, – como já foi demonstrado na Argentina -, de uma falsa autonomia e “liberdade” de trabalho que desloca as responsabilidades daqueles que se apropriam de seus frutos.
A ilusão de um futuro autônomo generalizado, no qual o desenvolvimento individual depende exclusivamente de nós mesmos, sem laços de solidariedade ou instâncias organizacionais coletivas que nos permitem defender-nos dos abusos do poder econômico ou a proteção contra contingências que nos ocorrem, só pode levar ao empobrecimento da vida comunitária e à perda de qualquer possibilidade de participação no governo de nossa existência como sociedade.
Álvaro Ruiz é advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos