Intensificação da jornada desafia a Justiça do Trabalho
Falar em direito ao não trabalho e ao descanso pode parecer um contrassenso em tempos de crise, com milhões de trabalhadores desempregados desesperados por uma oportunidade de ocupação e trabalho. Mas esse direito, ainda pouco preservado, pode ser fundamental na construção de uma sociedade justa que assegure o bem-estar da força de trabalho. Esta é a avaliação da professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), Sayonara Grillo Coutinho, feita durante o Congresso da Associação de Advogados Trabalhistas (Agetra-RS) realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Sayonara Grillo Coutinho afirma que é importante analisar as principais reivindicações trabalhistas de 100 anos atrás, do início do século XX, pois elas pleiteavam por uma carga de trabalho de oito horas seguida de oito horas de lazer e de oito horas de descanso. “Um equilíbrio que perdemos agora no início do século XXI em decorrência das novas tecnologias de produção e do desrespeito ao direito de estar desconectado para exercer o seu tempo livre como bem entender”, completa. O tema do direito ao não trabalho se enquadra no contexto de trabalho exaustivo e intenso, resultado de políticas globais de superprodução, flexibilidade e alta competitividade que desembocam no uso extremado de todas as energias do trabalhador. Exemplo dessa situação pode ser comprovado na nota do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) de 2014, revelando que na China o sistema produtivo é responsável pela morte de mais de 1600 trabalhadores por dia, 600 mil por ano. A nota da Inpacto trouxe o caso concreto do jovem trabalhador Li Yuan, de 24 anos, que sofreu um ataque cardíaco fatal por conta do excesso de horas trabalhadas no seu último mês de vida. Sobre o tema, Sayonara Grillo Coutinho cita a pesquisa do também professor de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Sadi Dal Rosso, que em seu livro sobre o tema demonstra que existem características distintas na jornada contemporânea que levam a uma intensificação do trabalho. Na obra, o professor Dal Rosso assinala que a intensificação se dá em todos os setores produtivos e que, em decorrência de suas características, é muito difícil de se avaliar, pois a intensidade tem a ver com a maneira na qual o trabalho é realizado e tem relação direta com o dispêndio de energias gasto pelo trabalhador na atividade concreta. “O problema é que o Direito do Trabalho se preocupou mais em regular o quanto e o quando se trabalha. O Direito do Trabalho definiu as jornadas e os módulos de trabalho semanal, mensal e anual, mas não avançou nesse grau de intensificação, não soube ainda definir o como se trabalha”, observa Sayonara Grillo Coutinho. Ela confessa que, para a Justiça, é muito difícil tratar do tema, pois a lógica do Direito do Trabalho está assentada sobre a estrutura de subordinação que afirma ser direito do empregador como será feito o trabalho. “A intensidade é objeto de disputa, de conflito social, e o controle da intensidade está nas mãos do empregador, restando ao empregado uma capacidade de luta, de contestação”. Sayonara Grillo Coutinho, ainda citando o professor Sadi Dal Rosso, lembrou alguns modos de intensificação: o alongamento da jornada, a acumulação de tarefas, a maior exigência de polivalência, a versatilidade, a flexibilidade, o maior ritmo e velocidade e a maior cobrança de resultados. “A gestão de resultados é uma das técnicas mais importantes para a intensificação do ritmo de trabalho. A vinculação da pessoa a um sistema de comunicação permanente, a disposição total ao empregador a qualquer hora, a manipulação da inteligência e do afeto leva ao desgaste maior.” A desembargadora do TRT do Rio de Janeiro se questiona sobre a Justiça do Trabalho diante desta realidade. “Como aferir isto, se não temos ainda um instituto para nos dizer como se trabalha? A Constituição de 1988 apontou alguns caminhos, mas a linguagem da CLT flexibilizada se afastou muito daqueles princípios constitucionais, pois fala em jornada suplementar diária ajustada e extrapolação de jornada em casos de força maior.” No Código Penal, lembra a desembargadora, está posto um conceito de trabalho exaustivo que o caracteriza em condições análogas ao da escravidão. “Uma das maiores disputas atuais nas lides penais e também no Congresso Nacional e na própria jurisprudência é saber se a jornada exaustiva é uma ‘mera irregularidade trabalhista’ ou se é uma afronta séria ao trabalho digno e decente”, completa Sayonara Grillo Coutinho. Ela observa também que o contexto atual do mundo produtivo estabelece linhas muito tênues entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso e lazer. “Trabalha-se vivendo, dorme-se trabalhando. É preciso se afirmar, assim como ocorreu com o direito às férias, o direito ao não trabalho durante a execução contratual. Esse direito fundamental expresso no tempo para se pensar, para se qualificar, para participar das atividades de interesse da categoria, para viver com a família, para ter as pausas necessárias que permitam uma compatibilização da vida familiar com a vida do trabalho.” Outro tema abordado por Sayonara Grillo Coutinho no Congresso da Agetra foi o direito de resistência que, conforme ela, tem o importante sentido de defesa, de oposição jurídica contra o uso irregular do poder de quem comanda. Ou seja, o direito de poder se insurgir contra ordens injustas e dar limite ao poder da força, estabelecendo, segundo ela, o que foi definido pelo jurista e desembargador aposentado Marcio Túlio Viana, “os limites de uma relação de trabalho para preservar a dignidade e o trabalho decente”.