Como o desemprego está criando ‘funcionários-polvo’ e aumentando pressão sobre quem trabalha
Em uma grande agência de emprego
no centro de São Paulo, uma cena se repete: com currículos em mãos, dezenas de
pessoas formam fila para falar com a recepcionista. “Você se cadastrou no nosso
site?”, ela pergunta. A frustração dos candidatos é visível, assim com o
cansaço da mulher que, do outro lado do balcão, atende centenas deles em uma
manhã.
O drama das 12 milhões de pessoas
que hoje estão sem trabalho no Brasil é bem conhecido. Mas pouco se fala dos
efeitos do desemprego para quem fica nas empresas. Com 3 milhões de demitidos
nos últimos três meses de 2016, segundo o IBGE, quem continua contratado pode
virar um “funcionário-polvo”, acumulando funções de ex-colegas, além de
precisar lidar com o medo do desemprego.
Apesar de não ser medido em
números, esse fenômeno é velho conhecido dos especialistas em mercado de
trabalho. Segundo os professores entrevistados pela BBC Brasil, o aumento de
pressão sobre os empregados é uma tendência natural em momentos de crise. “Toda
vez que uma empresa entra em dificuldade, ela precisa fazer o melhor possível
com o pessoal que permanece. Fazer muito com pouco torna-se a chave do
sucesso”, explica o professor da FEA-USP José Pastore, que também é consultor
em relações do trabalho.
Para manter o ritmo, diz Pastore,
empresários ficam com os subordinados considerados mais versáteis, que podem
aprender novas tarefas rapidamente. São os mais propícios a tornarem-se
“funcionários-polvo”.
MUITOS EM UM
Relatos de acúmulos de tarefas se
espalham por indústria, comércio e serviços. Vendedor em uma loja de roupas na
região metropolitana de Porto Alegre (RS), Jorge* virou caixa, estoquista e
responsável pelo crediário depois que outra funcionária foi demitida. Hoje
exerce dez funções em um expediente que ficou mais longo. “Quando minha colega
saiu, tudo o que ela fazia foi para mim”, diz.
O advogado Leonardo* também está
trabalhando mais. Além das petições, ficou encarregado de tarefas que caberiam
a um estagiário, como tirar cópias e cuidar da correspondência. Para fazer
tudo, diminuiu o almoço. “Antes comia em uma hora, e agora almoço em trinta
minutos. Uso o resto para agilizar.” Aparentemente, Jorge e Leonardo
tornaram-se mais produtivos: eles executam mais tarefas quase no mesmo tempo de
antes. A ligação entre produtividade e recessão foi discutida em estudos
americanos feitos após a crise de 2008. A BBC Brasil não encontrou uma pesquisa
semelhante por aqui.
Segundo o trabalho de economistas
da Universidade de Stanford e da Universidade de Utah, do último trimestre de
2007, quando a recessão dos EUA começou, até o terceiro trimestre de 2009,
quando ela terminou, a produtividade no país cresceu 3,16% em setores
não-agrícolas. A marca atingida em 2009 (3,2%) foi a maior desde 2003.
Para os pesquisadores, dois
motivos justificaram esse crescimento: a demissão dos trabalhadores menos
produtivos e, principalmente, o esforço dos que ficaram para manter suas vagas.
Mas mesmo que os brasileiros se tornem mais produtivos na crise, isso não deve
durar muito, diz a professora Regina Madalozzo, coordenadora do Mestrado
Profissional em Economia do Insper. A razão é simples: as pessoas se cansam. “Estudos
mostram que você pode até aumentar a produtividade no curto prazo, mas isso não
é sustentável. As pessoas não conseguem dar 100% o tempo inteiro, elas não são
máquinas.”
Segundo a professora, aprender
novas atividades têm um lado positivo, que é tornar o trabalhador mais
completo. No entanto, se isso significa ultrapassar limites físicos, a pressão
tem o efeito contrário, prejudicando o serviço. O vendedor-caixa-estoquista
Jorge já percebe que suas vendas pioraram. Enquanto faz o cadastro de um
cliente, deixa outros falando sozinhos. “O patrão não acha certo cair o
rendimento, mas não tem como, o atendimento não é mais o mesmo. Me sinto
constrangido por não cumprir tudo.”
MEDO DO DESEMPREGO
Concentrar tarefas não é a única
pressão que os brasileiros sofrem com tantos demitidos no mercado. Com o
desemprego acima em 12%, de acordo com o IBGE, o medo de ser mandado embora é
outra preocupação constante.
De acordo com índice da CNI
(Confederação Nacional da Indústria), o medo do desemprego ficou em 64,8 pontos
em dezembro – o indicador vai de zero a cem pontos e, quanto mais alto, maior é
o temor. O resultado do mês passado foi o maior desde 1996.
O receio de ser o próximo
demitido nem sempre coincide com o acúmulo de funções. O motivo pode ser
justamente o contrário: a demanda cai tanto que o trabalhador fica ocioso. “Me
sinto inútil. Saio de casa, enfrento o transporte, para chegar aqui e não fazer
nada”, diz Ana sobre a agência de marketing onde trabalha. Antes da crise, ela
desenvolvia campanhas publicitárias. Com as demissões, foi remanejada para o
treinamento, setor que está parado. “Você tem que fingir que está trabalhando,
porque não quer ser demitido.”
Para ela, a relação com os
patrões piorou. Ana diz que o discurso “se você não quer, tem quem queira” é
comum.
“Ele existe abertamente. Quando a
gente questiona os gestores, ele respondem de forma ofensiva.” Trabalhadores de
outras áreas relataram a mesma situação à BBC Brasil. De forma mais ou menos
exposta, dizem, a carta do desemprego tem sido usada com frequência. Contratada
de uma empresa da indústria alimentícia, Giovana diz que esse “alerta” não vem
diretamente da chefia, mas chega de outras formas. “Recentemente tivemos uma
reunião sobre benefícios e o responsável pelo RH disse ‘antes de reclamar da
alteração no plano de saúde, devíamos olhar as taxas de desemprego’. A ameaça
velada ficou evidente.”
RELAÇÃO PATRÃO-EMPREGADO
A relação patrão-empregado no
Brasil não é só difícil em tempos de recessão, diz a professora Carmen
Migueles, que fez doutorado em sociologia das organizações.
Migueles afirma que esse contato
é árido por natureza. Segundo ela, os subordinados muitas vezes não percebem
que os chefes também estão numa posição difícil. Por outro lado, os empresários
não costumam compartilhar o que está acontecendo com seu negócio e subestimam a
ajuda que seus empregados podem lhe oferecer. “O Brasil é um dos países que
mais tem uma visão negativa dos pares, do chefe e das instituições.”
Sobre as pressões exercidas pelos
patrões, a professora diz que perfis autoritários ou paternalistas são muito
comuns no país. Há também o que chama de “psicopatas”, que se aproveitam da
situação para ameaçar e cobrar seus funcionários.
No entanto, para Migueles, os
subordinados também têm parcela de culpa num relacionamento tão desgastado. O
brasileiro, afirma, possui uma propensão a sentir pena de si mesmo, o que
mostraria sua falta de maturidade profissional. “É muito comum no Brasil o
perfil da vítima: ninguém cuida de mim, meu emprego está por um fio. Muitos
querem que a empresa trate-os como filhos”, diz.
“O brasileiro acho que o
empresário é um super-homem: ele deve assumir os riscos, resolver os problemas
e motivar as pessoas.”
A falta de maturidade, dizem os
entrevistados, já teria se mostrado nos anos de prosperidade econômica, quando
as vagas eram abundantes – naquele momento os trabalhadores faziam o jogo hoje
dominado pelos patrões.
“Em 2014, você conversava com um
empresário e ele não conseguia segurar ninguém, as pessoas pulavam de lugar
para outro. Agora a mesa virou”, diz a professora de Administração da FGV-SP
Beatriz Lacombe.
Empresários de várias áreas
consultados pela BBC Brasil afirmaram que os cortes foram necessários para a
sobrevivência de seus negócios e que também estão sendo afetados pessoalmente
pelas incertezas da economia. Alguns disseram que redistribuíram tarefas para
não prejudicar suas equipes.
De acordo com os especialistas, o
ideal seria que patrões e empregados formassem uma “coalizão” para que, com
sacrifícios mútuos, pudessem passar juntos pela recessão.
ENXAQUECA E TENDINITE
Enquanto essas relações não
mudam, a pressão dentro dos escritórios começa a afetar a saúde dos trabalhadores.
A Associação Nacional dos Médicos Peritos estima que o número de pedidos de
auxílio-doença subiu até 30% no último ano. Os dados de 2016 ainda não foram
divulgados pela Previdência Social.
O presidente da entidade,
Francisco Cardoso, cita o caso de um homem que sofreu um burnout, problema
conhecido como doença do esgotamento profissional, depois que todas as 40
pessoas do seu setor foram demitidas. Só ele ficou.
A síndrome de Burnout inclui
sintomas como agressividade e falhas de memória. “É um caso isolado, mas
tipifica aqueles que, pelo acúmulo de funções ou pela necessidade de afastar o
desemprego, acabam trabalhando além do recomendável. Tem acontecido muito.”
Giovana*, que gerencia a área de
segurança de produto de uma indústria, diz que o excesso de trabalho trouxe de
volta sua enxaqueca. Ela também foi parar no hospital por problemas nas costas
e tendinite. Segundo Giovana, na filial brasileira da empresa, apenas duas
pessoas atendem as demandas que, na matriz, são realizadas por 30. O quadro de
pessoal no Brasil foi cortado em 30% nos últimos anos. “Me pressiono cada dia
mais, trabalhando além do expediente para manter tudo funcionando normalmente,
mas a sensação de ser o ‘gargalo’ de um processo do qual não tenho controle
chega a ser desesperadora.”
O cansaço dos trabalhadores não é
algo que se resolverá imediatamente com a recuperação econômica, alerta a professora
Regina Madalozzo, do Insper. O esgotamento dos brasileiros trará consequências
a longo prazo, sobretudo para as empresas que continuarem pressionando seus
funcionários acima de seus limites. “Quando sair da crise, será aquilo que
vemos nos filmes: todo mundo doente, se demitindo ao mesmo tempo. Você tem que
ter um mínimo de incentivo para ir ao trabalho todos os dias.”
Esta reportagem terminaria aqui.
Mas Iasmin*, uma editora de livros didáticos, queria incluir sua história: “é
bom poder falar”. Ela descreveu crises de dor de cabeça que duram uma semana,
além de confusão mental e perda da visão periférica. Em semanas tranquilas,
costuma acumular dez horas extras.
Suas respostas demoraram a chegar
e, por pouco, não ficaram de fora. A justificativa, no entanto, não poderia ser
um final mais propício: “o trabalho come até o tempo que a gente deveria usar
para denunciar quanto tempo o trabalho come”.
*Todos os trabalhadores
entrevistados tiveram os nomes alterados para preservar suas identidades.
Fonte: BBC Brasil
Texto: Ingrid Fagundez