Projeto de reforma trabalhista é ilegítimo, mentiroso e traidor
FOTO: Agência Brasil
No
apagar das luzes de um ano marcado por conflitos e incertezas no cenário
político-institucional, o governo apresentou à Câmara dos Deputados o projeto
de lei nº 6787/16 que pretende tornar ainda mais flexível o direito
aplicado às relações individuais de trabalho. Fundada numa suposta
obsolescência da legislação trabalhista, a reforma almejaria “aprimorá-la” e
“modernizá-la”, proporcionando, assim, condições vantajosas para a geração de
empregos.
Esse
propósito convincente não condiz, no entanto, com o verdadeiro intento
mascarado: atualização e modernização da lei trabalhista são palavras ao vento
com interesses econômicos acaçapados. Perfidamente, a proposta se serve da
momentânea desaceleração econômica para justificar medidas amorfas que nunca,
jamais, em tempo algum fugiram da pauta reivindicativa patronal, nem mesmo em
tempos de pujança.
A
desfaçatez do plano não resiste a uma análise mais diligente dos seus lastros. A
Consolidação das Leis do Trabalho – alegadamente arcaica, porquanto nascida na
década de 1940 – teve mais de 85% (oitenta e cinco por cento) dos seus
dispositivos alterados ao longo destes setenta anos. Várias outras leis esparsas,
cronologicamente mais “modernas”, também se prestam a regular as relações de
trabalho: ou seja, a legislação trabalhista não é tão vetusta quanto se
sustenta.
Não
é verdade, ademais, que a nossa legislação seja rígida e dificulte
investimentos. Ao contrário do direito coletivo do trabalho, rígido por
natureza, as relações individuais de trabalho gozam de uma plasticidade
característica de países periféricos, revelada na redutibilidade salarial por
negociação coletiva – art. 7º, VI, CF –, na compensação da jornada de trabalho
– que afasta o pagamento do adicional de horas extras e diminui os custos da
produção – e, sobretudo, na desproteção do encerramento unilateral do contrato
de trabalho – o que gera elevada rotatividade de mão de obra.
Ao
contrário do que pretensamente objetiva o projeto, a redução dos custos da
produção por meio do barateamento da força de trabalho não possibilitará ao
País reduzir seu índice de desemprego. Ao revés, a retirada de direitos
trabalhistas e, com efeito, o encolhimento da renda ensejarão a diminuição da
capacidade aquisitiva dos consumidores. Não é outro o resultado do estudo
promovido pela OIT em 63 países desenvolvidos e em desenvolvimento: a
diminuição da proteção trabalhista não estimula a criação de empregos e não é
capaz de reduzir a taxa de desemprego.
Na
realidade, a reforma induz ao erro. A aparência “moderna” que se pretende dar à superflexibilização deixa
às sombras um passado longínquo pós-revolução industrial marcado pela
desregulação e pela precarização. A intervenção regulatória estatal decorre da
inescusável constatação de que não existe harmonia entre lobos e cordeiros:
“entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a
liberdade que oprime e a lei que liberta” (Henri Dominique Lacordaire).
Precisa-se
de mais proteção, e não de menos. O projeto, entretanto, na forma como está
posto, corrói, destrói e precariza, mormente por meio da elevação da jornada de
trabalho, da permissão legal à negociação precarizante, da substituição do
contrato por prazo indeterminado por trabalho temporário e a tempo parcial. Não
é só.
Chama
à atenção, ademais, a evidente ilegitimidade substancial da proposta: trata-se
de uma reforma que padece de amparo popular, tendo sido elaborada à míngua de
debates e discussões sociais, sem que os interessados participassem ativamente
da sua construção. É lógico, o projeto não suporta um debate franco e
destemido. Esta ilegitimidade viola normativos internacionais ratificados pelo
Brasil, que exigem ampla discussão em torno tema, mediante consultas públicas
efetivas (art. 2º, 1, Convenção 144, OIT) e prévias (art. 7º, Convenção 154,
OIT) de caráter tripartite.
No
atual cenário social em que o retrocesso trabalhista tem se apresentado com
múltiplas facetas e vem acompanhado de mudanças estruturais que limitam gastos
e atrofiam o Estado, é preciso falar a verdade: o projeto de reforma
trabalhista é ilegítimo, traiçoeiro e confere uma falsa ideia da realidade.
Tiago Muniz
Cavalcanti é Procurador do Trabalho. Coordenador Nacional de Erradicação
do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.